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Mergulho
As paisagens in/visíveis de Tito Mouraz
“if doors of perception were cleansed every thing would appear to man as it is, Infinite.
For man has closed himself up, till he sees all things thro’ narrow chinks of his cavern”
William Blake
Desde sempre que Tito Mouraz (Portugal, 1977) nos habituou a um quadro composicional pensado, minucioso, com uma mística própria, que tanto transpira método e (pre)meditação, como uma espécie de desconforto existencial. Lembro-me que no começo era o formalismo imponente de Open Space Office, ou a inquietude realista da Rua da Cabine. Era a Casa das Sete Senhoras que, simultaneamente, arrepiava e estimulava a uma leitura ansiosa. E se em Fluvial era explorada a autenticidade do real que, apesar de multi-interpretativo, elucidava com clareza o que esperar do documental; muitos dizem que Mergulho é uma virada nesse registo habitual, uma outra forma de ver. Se atentarmos na sua premissa introdutória, é este um trabalho que dá pistas desde o início. Não assumamos, mergulhemos; pois, se o fizermos, deparar-nos-emos com o mesmo Tito, aquele que nos diz que as imagens nem sempre são o que parecem, que a narrativa (como qualquer boa narrativa) se constrói de um todo, através de uma história que não é estática ou presumível, mas que, de fluída, nos questiona constantemente.
Mergulho é sobre os Açores. Melhor, é feito nos Açores; fruto de uma estadia no arquipélago, ao longo da qual o artista conectou profundamente com o território. Daqui poderíamos até pressupor saber o resultado; aquele levianamente expectável de um mote que propõe um trabalho fotográfico sobre as paisagens açorianas. Um território invariavelmente conhecido pelo verde e vigoroso envolvente, tantas vezes convertido na amplamente disseminada imagem postal, que torna qualquer indagação sobre o mesmo capaz de cair facilmente no lugar comum. Muito foi dito e (d)escrito sobre as ilhas, contudo esta geografia “fragmentada e flutuante” é especial, pois “desafia o sentido de volatilidade das coisas e da sua percetibilidade”, já o disse Sérgio Mah. É isso que faz Mergulho – num terreno iminentemente mutante, torna-se ele também inesperado em quaisquer assunções e vai mais longe. Ou devo dizer, mais fundo.
Se mergulhamos, entramos em profundidade, somos absorvidos, abstraídos, entregues a um espaço que passa a ser intimamente nosso. Na parede, as imagens pautam-se pelo rigor de uma sequência formal e límpida que desafia a morfologia atípica, clivosa e imprevisível das ilhas. A escala também. Se os cenários insulares indubitavelmente nos avivam à magnitude característica de uma geologia vulcânica, bruta e proeminente, a verdade é que perante nós não há qualquer oposição demarcada, antes um apelo suave a um encontro um-a-um. Ao seu silêncio. Curiosamente, uma quietude que nos (re)lembra o mundo em que hoje somos forçados a viver. E, aproximando-nos daquelas imagens discretas e imaculadas, suspendemos o tempo e o espaço nesta relação que, de tão próxima, materializa ali mesmo um mergulho, numa experiência íntima e pessoal. A paisagem essa, que se materializa ante nós, não nos deixemos enganar: é da mesma ordem de grandeza do panorama açoriano “tão poderosa quanto aquela que surge quando estamos na sua presença”.
Não bastasse a simbologia conceptual enunciada pelo projeto e fortalecida pela curadoria que lhe concebe uma sóbria privacidade, as imagens em exposição são os originais de uma técnica que introduz ainda mais significado nesta imersão. A série, desenvolvida em película instantânea, introduz um caráter no projeto que vai além da sua fisicalidade. Se é certo que derivado da química envolvida e da transferência da película negativa em imagem positiva são visíveis “imperfeições” e “erros”, conceptualmente são adições que enriquecem em conteúdo, sentido e profundidade.
E, de repente, lá está o mesmo Tito, surpreendentemente diferente: não mais a proporcionar a veracidade incontestável de uma paisagem previsível, antes audaz ao desafiar a fidelidade do cenário, ao transformar o visível no abstrato, no onírico, no quase intocável. E se, ao fazê-lo, o artista questiona a linguagem fotográfica, também o faz, e nos leva a fazer, sobre a nossa própria noção da realidade. Conhecemos o lugar que vivemos? Saberemos nós retratá-lo absolutamente? Já vimos tudo o que pensamos saber sobre esse local? Aquilo que seria óbvio para quem tão bem conhece a ilha ou a pensa conhecer, desdobra-se aqui num potencial alargado de leituras, capazes de estimular a memória e a imaginação, gerando uma outra (nova) compreensão do lugar. É isto que Mergulho tem de mais especial: uma reconfiguração da paisagem tal como uma criança o faria – a melhor forma, a mais expandida, num inevitável regresso às formas mais simples, segundo uma mistura de cores e sobreposições. Mais do que fotografias, assemelham-se a pinturas, desenhos, sonhos ou visões imaginadas que, ainda que reveladas pelo autor, exploram imaginários de todos nós. Uma reflexão além do território, que navega o espectro imenso de possibilidades do médium fotográfico, num transe constante de relações e influências, não apenas de materiais e suporte, como de estéticas e formas de ver. Metamorfosear a noção da paisagem oferece potenciais narrativos e representações visuais infinitas para quem cria, mais ainda para quem lê. É caso para dizer: partimos sempre do conhecido objetivo, para alcançar a fertilidade plural e rica de tudo o que é subjetivo.
Ruão, Mafalda, in "Umbigo", 04/2021