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O olhar-em-presença como presença: do singular, do seu mistério

Fluvial

O singular floresce, luminescente mas vulnerável, na figura feminina que emerge de um meio aquátil absortivo, lúgubre. Na margem da ribeira o observador olha e fotografa um rosto de mulher emoldurado pela esboçada oval de uma sombra, mas meio oculto por ramagens de árvores. Submersa até quase aos ombros, devolve-lhe um olhar enamorado. Este olhar tem o seu duplo no reflexo da água e, ao apresentar-se nele, torna-se denso e temeroso: a bela mulher vê o observador a olhá-la e, do seu ponto de vista, também ele se lhe apresenta meio oculto pela vegetação. O véu interpôs-se. Do intricado jogo de sedução que prende estes dois observados observadores assoma a inquietude desse misto de enamoramento e temor que se funda na consciência de que o olhar se tornará quádruplo: o do observador que fotografa também tem o seu reflexo, o seu duplo — no do espectador imaginado que verá a cena já consumada em imagem. Fascinado, o observador que fotografa tanto descobre como constrói, completamente mergulhado nestas sinuosas interrogações sobre a natureza do que é visto, assoberbado pelo milagre de uma imagem que fala de si própria como espelho-de-si. Num gesto apressado estas considerações parecem alimentar-se exclusivamente da evocação da condição do fotográfico, mas é sem esforço que no desfilar das imagens subsequentes esse gesto se adensa para pesar sobre os terrenos que o excedem, trilhando o caminho bem mais amplo e fértil que transcende a especificidade da disciplina. Este é, pois, um ultrapassar-se no apontar ao caminho de uma vida vivida na arte, numa arte que se constrói, daquela partindo para ser presença renovada.

A imagem que abre a série Fluvial é-nos dada como verdadeiro prelúdio que, todavia, não se limita ao papel que lhe coube — o magistral anúncio dos dotes que fixam a singularidade de uma imagética. Quer também sintetizar o que vem sendo a busca de Tito Mouraz e, de tão icónica, é provável que estabeleça também o sinal de uma outra etapa na sua obra. Já em séries anteriores, a atenção de Tito Mouraz ao humano e ao animal revelava preocupações identitárias face ao mistério cósmico — veja-se como em Casa das Sete Senhoras, a gente, os bichos, são o (e no) território, tanto no plano do meio físico, como no do indizível. Mas em Fluvial a localização geográfica e um certo apelo do antropológico perdem relevância estética e temática em favor da vastidão de uma relação: a do humano e do animal com a ideia de um específico elemento natural, o curso de água. Esta apetência pelo gesto de largo alcance, que já se intuía nas séries anteriores, atinge nesta, em pleno, a sua maturidade.

No sintetismo simbólico encontram estas imagens o seu dizer e, nele, carregam a força que guia o imaginário por lugares incertos: o curso de água está em toda a parte. Dir-se-ia, até pela evidente filiação desta temática a momentos concretos da história da arte, que é ela, a arte, o lugar onde esta água escorre para avolumar o rio que, desde Heraclito, constitui metáfora da irreversibilidade do tempo e causa da metamorfose dos seres e das coisas. É com o modo directo de quem vira ou verga o corpo para olhar que em muitas destas imagens se mostra não só essa metamorfose, mas também a fusão, dos seres entre si e deles com os elementos, por dissolução. Metamorfose e dissolução somam à capacidade a reacção e, contudo, como activos de adaptabilidade, revelam também um certo desencanto no homem, enquanto ser funcional e expectável, a cumprir-se face ao meio físico e social. Há uma perturbadora beleza na visão do gesto dinâmico destes corpos a apresentar-se como redução formal (assim moldados são eles também a rocha), nesse antagonismo entre tensão e liberdade, quando só esta deveria ter lugar neste habitat de contexto do lazer, essa possibilidade aprazada para o esquecimento do que constrange. Não menos perturbador é este mundo surgir, em algumas imagens, estranhamente estático, quando aparentemente tudo o conduziria para a dinâmica que o fluxo exige. E, contudo, apesar desta imobilidade que, sendo o perpetuar de um bem, é também uma ameaça, surge sempre povoado pelos vestígios de uma ideia de movimento perpétuo: na aventura, na ascensão, no mergulho, no salto, na fertilidade, na elevação, na comunhão, na ternura, no irisar dos fluídos.

Lisboa, Fevereiro de 2018

Nuno Matos Duarte