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07/04/2021

Mergulho

Mergulho de Tito Mouraz (Portugal, 1977) é um convite para explorar as paisagens dos Açores. 
Tendo uma relação afectiva com o arquipélago, o projeto surge como um confronto entre o conhecido e o desconhecido.
O uso de processos químicos com película instantânea cria um conjunto de peças únicas que dão vida a um universo onírico.

Na trajetória de Mouraz, sempre houve uma atração por territórios de limites: paisagens marítimas, zonas vulcânicas, grutas, florestas, montanhas, etc. Embora o início seja o registo de lugares autênticos, na exposição rapidamente o documental passa ao abstracto, ao teatro e à ficção.

Na retoma da sua a atividade, o programa de SALUT AU MONDE! apresenta em 2021 quatro novos projetos que ampliam a temática do projeto e alargam as possibilidades da imagem fotográfica como documento. 

 

Inauguração
Salut au Monde!
07 Abril  15:00 às 20:00h

Rua de Santos Pousada 620, 4000-480 Porto
quarta-feira a sábado das 14h às 19h

+info: Salut au  Monde! website

 

Mergulho (por Sérgio Mah)

O género da paisagem, a atração por territórios que questionam os limites geográficos, como as orlas costeiras, as zonas vulcânicas, os sítios subterrâneos, as florestas e as montanhas, lugares remotos e inóspitos, (aparentemente) nos confins da civilização, que desaconselham a habitabilidade ou simplesmente a frequentação humana, devido às suas extremas condições topográficas e meteorológicas, configuram um dos eixos preferenciais do imaginário fotográfico de Tito Mouraz.

Paralelamente, podemos também reconhecer que na sua obra predominam imagens que evidenciam um rigoroso sentido composicional, que privilegiam a clareza e a sobriedade estética, ou seja, que acompanham genealogias do estilo documental. Porém, numa análise mais atenta e exigente apercebemo-nos de que as fotografias de Tito Mouraz não são plenamente documentais nem muito menos objetivas, em virtude da sua retórica articular a competência descritiva com o potencial especulativo, estético e reconfigurador da imagem. Podemos então simplesmente afirmar que o fotógrafo parte das convenções da imagem objetiva para procurar a mais ampla e profícua subjetividade.

A série Mergulho é o resultado de uma investida recente pelo território açoriano. Não é a primeira vez que o fotógrafo trabalha nos Açores, nessa terra fragmentada e flutuante que desafia o sentido de volatilidade das coisas e da sua perceptibilidade. As imagens dão-nos a ver paisagens, lugares e pormenores da natureza e da ocupação humana. O ambiente é silencioso, mas onde pressentimos a acção do vento e das vagas oceânicas sobre as zonas de costa. A água, as rochas e as pedras, a luz e a obscuridade, o dia e a noite, são representados como elementos imanentes a uma realidade habitada por movimentos, fluxos e mutações. É notoriamente um olhar que se preparou, que se disponibilizou, para experienciar de modo sensível e meditativo a natureza única e peculiar de um território fortemente animado por uma conflagração de tempos e movimentos – geofísicos, sensoriais, ficcionais, estéticos.

Para esta nova série, o fotógrafo optou por utilizar película instantânea, uma decisão que introduz alterações substanciais relativamente aos seus métodos usuais de produção. Quando se utiliza este tipo de película, obtém-se uma imagem positiva sobre papel fotográfico e uma película em negativo com uma camada de matéria química que esteve em contacto e gerou a imagem positiva. Nessa matéria química vemos uma cópia precária da imagem (pela menor nitidez e detalhe e pela presença de imperfeições) que pode ser transferida para um outro suporte.
Acrescente-se que esse processo de transferência tem que ser executado logo após a separação da imagem positiva do seu negativo. É um processo complexo e impreciso e que, dependendo das características da imagem e das condições de temperatura e de luz ambiente, podem desencadear transformações na qualidade representacional da imagem.

Ao percorrer estas imagens de Mergulho percebe-se que, para além dos temas fotografados, Tito Mouraz pretende reflectir sobre o espectro de possibilidades do médium fotográfico, procurando inclusivamente traçar relações com outros modos de expressão artística, como a pintura e o desenho. Há um grupo de fotografias que se distingue pela sua clareza representativa. São imagens transparentes, que privilegiam o olhar e o reconhecimento do assunto, como realidades que poderíamos encontrar no mundo: um caminho de terra, pormenores da terra e de rochas, um muro baixo ou uma estrutura metálica. Devido à escuridão, ou pelo ponto de vista adoptado, são fotografias sem horizonte, planos fechados, opacos, que comprovam a eficácia da fotografia na constituição de um mundo bidimensional.

As restantes fotografias, que formam um conjunto maior, resultaram de transferências de camada química. Em termos visuais, são menos homogéneas no que diz respeito à amplitude do plano e à competência propriamente figurativa da imagem. Vemos sobreposições de diferentes imagens (porque é possível realizar vários transfers para um mesmo suporte), que se fundem para compor realidades espectrais e fantasmáticas; noutros casos, deparamo-nos com imagens em que o processo químico desencadeou disrupções visuais – que podem abranger desvios na densidade e na cor (como a água do mar com uma coloração amarela) até à constituição de manchas abstractas. São, portanto, imagens profundamente afectadas pela mediação química, que operam deslocações para domínios visuais que quebram com a expectativa habitual da eficácia fotográfica na relação entre representação e representado. É um imaginário instável e impermanente, o que é certamente uma qualidade, porque trata de assegurar uma das expetativas que mais anima a prática artística, o ensejo de um olhar diferente, sugestivo e propiciador, passível de mobilizar no espectador aquilo que ele tem de mais subjetivo, intuitivo e projetivo.

Sérgio Mah, Lisboa, 4 de março de 2021