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Tito Mouraz e as suas (nossas) Paisagens interiores
O território enquanto transformação humana da paisagem; a paisagem como local transitivo de vivências e construção de significados, a sua observação e memórias; a natureza e mitos são explorados na obra fotográfica de Tito Mouraz (1977), em imagens que devolvem ao espetador um olhar introspetivo e pessoal, mergulhando-o numa experiência imersiva e solitária que convoca a imaginação, inquietude e uma nova compreensão de lugar. Imagens que nascem do encontro entre o ver e o sentir, entre o corpo e o espaço, e que partindo do real nos conduzem para o ambíguo, para um lugar e tempo em suspensão, nos instantes captados pelo artista.
Explorando uma relação íntima entre ser humano e natureza, a prática artística de Tito Mouraz relaciona sempre a paisagem com o lado humano e isso tem muito a ver com as minhas raízes [Beira Interior], onde nasci e o contacto direto que sempre tive com a natureza. Transmite-se na minha prática, quer eu o faça no meu local afetivo ou fora daqui, está enraizado no meu trabalho. A forma como eu trato o lado humano e a paisagem é quase como se fosse um só, como se fizessem parte da mesma peça, não separo uma coisa da outra. Ao fotografar pessoas comuns e visões naturais, Tito Mouraz procura um tratamento e uma relação equivalente entre corpos humanos e não-humanos com o objetivo de provocar uma suspensão, uma pausa, que sirva de contraponto à fugacidade com que no geral observamos o mundo hoje em dia. O reconhecimento da ação humana e da leitura subjetiva da paisagem relacionam-se com o pensamento do filósofo Georg Simmel (1858-1918), segundo o qual o que permite um determinado pedaço de natureza constituir-se numa paisagem é um sentimento da ordem da subjetividade e da afetividade que o autor denomina Stimmung, um estado de espírito, tom, tonalidade, sentimento pessoal. As vivências do artista e a sua ligação emocional à paisagem da Beira Interior manifestam-se nessa relação entre o mundo-natural e não-natural, para quem a fotografia oferece uma experiência pessoal e é uma possibilidade de múltiplas interpretações de aprendizagem, de descoberta de lugares e de ensinamentos sobre pessoas, tempo, distâncias, o sentir e o observar. Movido pelo desejo de reinvenção dos espaços a prática fotográfica de Tito Mouraz não convoca o real, antes uma verdade disfarçada, mediante a construção de ficções íntimas em imagens que, indefiníveis no tempo e espaço, convocam a imaginação, geografia pessoal e emocional do observador. A importância atribuída à luz e à atmosfera caraterizam as diversas séries do artista, que num desafio constante de transpor para a película a experiência pessoal do que sente e observa nas diferentes geografias que percorre, dá-nos a oportunidade - com o seu olhar - de as reconstruirmos, incitando-nos o desejo de as conhecer e visitar. Numa procura constante por cores, texturas, formas e elementos, despercebidos ao olhar comum, o autor constrói discursos e projetos fotográficos apresentando-nos sequências oníricas e poéticas - sem quaisquer ambições documentais - carregadas de misticismo e mistério, perplexidade e estranheza.
A longevidade temporal de criação dos seus projetos, o trabalho de campo, a experiência do lugar e o olhar atento de quem observa e sente os espaços, presentificam-se numa intimidade, harmonia visual e acuidade plástica, e na exploração de dimensões como a luz, cromatismo, focagem e claridade. Apesar de haver uma presença humana – por vezes anónima - em algumas das imagens das diversas séries, ou de apenas a pressentirmos através de elementos subtis, há também uma espécie de fantasmagoria, um lado de abandono e de suspensão que as carateriza. Paisagens misteriosas que nos devolvem uma invulgar experiência de tempo, em que corpos humanos parecem emergir como formas naturais, por vezes diluindo-se e fundindo-se nos elementos, num momento de contacto e encontro com a energia do lugar que o artista procura e regista. Sentimo-lo na imagem do homem que de costas e em posição de mergulho se funde num ambiente dominado pela água – elemento em suspensão - como se flutuasse sobre a noite, e cujo gesto e forma - presença isolada e quase escultórica – associamos, criando um diálogo interessante, com a imagem de um outro homem cujo corpo, igualmente de costas como que ensaiando uma queda, parece procurar refúgio na vegetação. Por vezes, qual processo de metamorfose, descobrimos nos corpos humanos, traços de animais como nas duas imagens a p/b da série Farleigh: a de uma mulher e a de um animal cujas linguagens corporais idênticas - ambos sentados de costas para observador- refletem solidão e intimidade, numa atitude contemplativa e de comunhão com a paisagem onde se encontram. Em algumas das suas imagens reconhecemos uma aproximação à pintura, como no caso da fotografia pertencente à série Fluvial- qual cena pictórica suspensa no tempo- em que uma fina planta aquática flutua num ambiente dominado pela água, cuja superfície espelhada e reflexiva em tons de azul se confunde com um céu estrelado.
A cores ou a preto e branco, as obras fotográficas de Tito Mouraz, evocam tanto um mundo etéreo, como por vezes um ambiente sombrio e inquietante que, ao mesmo tempo, nos desassossega e tranquiliza. Jogos de sombra e luz; chiaroscuro; harmonias e contrastes cromáticos e de temperaturas; a magistral utilização do flash; a precisão na escolha dos enquadramentos, tudo contribui para a criação de uma atmosfera hipnótica e nostálgica, em que o silêncio impera.
Nascidas da motivação interior do artista e conduzindo-nos por narrativas íntimas, as fotografias de Tito Mouraz revelam-nos a potencialidade metafórica através da criação artística e subjetiva em imagens que, pela sua natureza semiótica e ultrapassando o registo documental, incitam à reflexão. O apelo à natureza carateriza a linguagem visual de Mouraz em obras que nos revelam as suas e as nossas paisagens e geografias emocionais e interiores, pois como afirma o antropólogo Ingold (1948): cada paisagem conta uma história sendo, ao mesmo tempo, ela própria uma história sobre vidas e tempos predecessores, to perceive the landscape is therefore to carry out an act of rememberance.
Teixeira, Mafalda, in "Umbigo", 04/2024